De qual Espírito falamos?

De qual Espírito falamos?

Uma das piores coisas que pode acontecer a um cristianismo é ele pensar que o mundo do cotidiano não importa mais. Embora essa frase possa parecer um tanto estranha para quem a lê despretensiosamente, nela está contido um grande problema para muitas pessoas que na atualidade se dizem cristãs.
Em dias atuais, é possível observar um crescente dos movimentos de cunho espiritualista, no qual se apresenta a ideia de que a vida no Espírito quer dizer uma vida que não se envolve com o mundo, uma vez que “nossa pátria não é daqui”, ou ainda uma espécie de ascese que visa se isolar de tudo aquilo que é mundano em nome de uma vida gloriosa que se espera no futuro. Tudo isso, por sua vez, utilizando-se de versículos tirados dos seus contextos para justificar que tal postura é desejada por Deus e até mesmo necessária para uma vida em santidade, o que mais se assemelha ao neoplatonismo do que ao cristianismo.
No entanto, ao observar o texto bíblico, percebe-se que a ação do Espírito de Deus sempre foi na história e nunca fora dela. Relendo a história do povo de Israel, conforme narrado no Antigo Testamento, é possível perceber que a memória que o povo tem de Deus é devido aos seus atos feitos em direção à salvação do seu povo. À pergunta: “quem é o seu Deus?”, o povo de Israel respondia: “o nosso Deus é aquele que nos tirou da terra da servidão, libertou-nos do Faraó, e nos levou à terra de Canaã”.
Da mesma forma, ao longo de todo movimento profético, a ação de Deus e seu Espírito sempre se voltaram para a vida cotidiana. O Espírito sempre foi aquele que, falando pelos profetas, cobrava dos líderes do povo que se exercesse a justiça, que a causa dos que eram desprovidos fosse considerada pelo monarca e que não o fazer ao pobre era ir contra o próprio Deus.
No Novo Testamento, na própria vida de Jesus que segundo todos os evangelhos se mostra como vida guiada pelo Espírito, a concretude da vida se fazia presente, sendo nela o lugar em que se poderia perceber sua ação e, até mesmo, o motivo pelo qual Jesus de Nazaré foi cheio do Espírito. O texto de Lucas deixa muito claro a estreita relação que há entre ser cheio do Espírito Santo e ter um envolvimento com as causas dos oprimidos, quando narra Jesus na sinagoga, lendo o livro do profeta Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas novas aos pobres. Ele me enviou para proclamar liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor” (Lc 4,18-19).
Diante disso, qualquer tentativa de se pensar uma espiritualidade fora da concretude da vida, ou ainda que não volta o seu olhar para as pessoas necessitadas, desprovidas, marginalizadas e excluídas da sociedade se mostra como espiritualidade que não se coaduna com o exemplo de Jesus.
As diversas tentativas de separar o Espírito de Deus do mundo, como se a sua santidade fosse impeditiva para o dia a dia das pessoas comuns se mostram como muito perniciosas para a fé cristã, uma vez que gera uma espiritualidade egoica, que nada tem a ver com a solidariedade e engajamento social que são próprios do evangelho anunciado por Jesus.
Com isso em mente, torna-se sempre necessário lembrar que o Espírito que buscamos é o Espírito de Cristo e, consequentemente, ser cheio desse Espírito tem como consequência, ter uma vida que reflete a vida de Jesus, o que implica lutar pela causa das pessoas marginalizadas, exigir que a justiça seja feita a todas as pessoas, demandar igualdade social, engajar-se na luta pela criação, pelo direito da natureza que, como se crê, faz parte da mesma criação que nós. Em outras palavras, ser cheio do Espírito de Cristo não tem a ver com propostas de não envolvimento com o mundo. Antes, implica o envolvimento nele, visando a sua transformação por ter em vista o Reino de Deus que há de vir.

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