Um Deus que se deixa narrar

Um Deus que se deixa narrar

Imagem de Free-Photos por Pixabay

É mania de todo fundamentalista religioso tentar explicar a pessoa de Deus, ajeitando-o conforme a visão de mundo que possui. Para o fundamentalista há sempre uma forma correta de se falar a respeito de Deus, bem como os termos autorizados e não autorizados a serem utilizados nos momentos de louvor, oração, refeição etc. Em outras palavras, Deus é aquele que controla, tem um padrão de qualidade e um manual de como servi-lo corretamente, que devem ser seguidos por todas as pessoas que se dizem cristãs.

Essa postura, embora faça muito sucesso e traga uma sensação de certeza de se estar no caminho certo às pessoas que a ela se submete, em nada tem a ver com aquilo que o povo da Bíblia compreendeu a respeito da pessoa de Deus.

Primeiramente, a história da relação do povo de Israel com Deus, na maior parte do texto bíblico, foi exposta de uma maneira narrativa. Assim, para o povo bíblico era muito claro que o conteúdo da mensagem era muito mais importante do que sua forma, sendo o ensinamento de Javé o ponto importante a ser guardado. Somente muito tempo depois que tal ensinamento narrado foi transformado em leis rígidas pela classe religiosa do judaísmo, gerando a ideia de que seria praticamente impossível cumprir os 613 mandamentos exigidos por Deus registrados nos livros de Moisés.

Não é de se espantar, então, porque Jesus fora considerado um herege e blasfemo pelas autoridades religiosas de seu tempo. Sua relação com aquele a quem chamava de Pai o fazia compreender que os ensinamentos de Deus não se mostravam na rigidez das leis, mas na graciosidade das narrativas e poesias espalhadas ao longo de todo texto do Antigo Testamento.

Tanto as narrativas do Antigo Testamento como a relação de Jesus com seu Pai também narradas pelos Evangelhos revela um Deus que permite, justamente, ser narrado e conhecido por meio dessas mesmas narrativas construídas por um povo na maioria das vezes iletrado, pobre e sofredor que se relacionava com o Deus de seus antepassados.

Reconhecer esse ponto importantíssimo no texto bíblico não significa dizer que o estudo sistemático, especulativo e filosófico a respeito de Deus deve ser deixado de lado e abandonado por parte dos teólogos e teólogas da atualidade. Claro que não. Contudo, reconhecer a categoria da narratividade nos ensinamentos do cristianismo é tarefa fundamental para uma teologia que quer se dizer hoje e fazer sentido para as pessoas de nossa sociedade.

Como povo brasileiro e latino-americano fomos colonizados nas diversas estruturas de nossa forma de viver. A forma de fazer teologia e de conhecer as coisas, consequentemente, não estão fora dessa perspectiva. Uma prova disso é justamente a maneira como consideramos correto falar a respeito de Deus com termos na maioria das vezes eurocêntricos, fora da realidade do próprio povo, de maneira que a teologia se torna uma linguagem distante e desconexa das vivências de fé que as diversas populações do nosso país experimentam em seu dia a dia.

Se a teologia cristã é um discurso a respeito do discurso que é feito de Deus a partir de determinada realidade histórica, cultural, política e econômica, por que ainda insistimos em fazer teologia latino-americana longe das vivências, experiências e narrativas latino-americanas, concentrando nossos esforços somente em teologias importadas do norte global?

Responder a essa questão é tarefa urgente para a teologia brasileira do século 21 e ter coragem para fazer teologia a partir das vivências e experiências de fé de nosso povo e suas diversas vertentes (em outras palavras, uma teologia narrativa) é crucial para que possamos, realmente, avançar ainda mais em uma teologia de matriz descolonial em nosso país.

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