Deus é amor sem qualquer “mas”

Deus é amor sem qualquer “mas”

Ao contrário do que muitas pessoas cristãs possam imaginar a imagem de Deus que temos hoje nem sempre foi a mesma. Ao longo do texto bíblico é possível encontrar diversas visões diferentes a respeito de quem Deus é. Desde o “Deus da terra” que estava ligado a um lugar específico e reinava sobre um determinado local geográfico (O Deus de Canaã era diferente do Deus do Egito, por exemplo), até a imagem de um Deus que é soberano sobre todas as coisas e criador de tudo, que passa a ser desenvolvida no período exílico e pós-exílico, todas são construídas a partir da experiência de um povo, em determinado contexto geográfico, político e econômico.
Dessa forma, é ilusório pensar que a forma como falamos de Deus hoje é a mesma forma que se falava dele nos tempos bíblicos, especialmente no Antigo Testamento. As categorias que usamos para falar sobre as coisas mudam com o tempo e, da mesma maneira, também as que usamos para falar sobre Deus.
O cristianismo que surge com a pregação dos apóstolos também fará suas próprias elaborações a respeito de Deus, mostrando que, a partir de Cristo, Deus deveria ser enxergado e dito de outra maneira. Já quase no final do primeiro século, a carta de I João trará a forma que se tornou ponto pacífico entre os cristãos, e que é bastante conhecida e falada em homilias, pregações, evangelismos etc.
A fórmula Deus é amor, ao mesmo tempo inovadora, uma vez que estabelece que Deus é pura relação, visto que só existe amor quando há algum tipo de relacionamento, pois é próprio do amor um outro a quem se ama, torna-se também um critério para o discernimento a respeito da pessoa, conhecimento e ação de Deus pela perspectiva cristã. O próprio autor da carta dirá que “todo aquele que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Quem não ama, não conhece a Deus, pois Deus é amor” (I Jo 4,7-8). Dessa forma, conhecer a Deus implica amar, e, da mesma forma, podemos dizer também que todo ato que não é em amor não pode ser um ato que leva o nome de Deus.
Em via contrária, está bem claro que todo ato que é em amor só pode ser um ato feito em Deus e no qual Deus se agrada, afinal, atos em amor só podem ser feitos quando motivados pelo próprio amor. Assim, o amor se torna um critério de discernimento do cristianismo para se pensar as relações e ações que são feitas em seu nome.
Se é próprio do amor a liberdade, então toda relação que não produz liberdade para seus integrantes não pode ser uma relação baseada no amor e, consequentemente, não pode ser uma relação de base cristã, o que nos leva a pensar os diversos relacionamentos abusivos que existem entre cristãos e que são legitimados pela impunidade e por pregações de vieses opressores.
Se é próprio do amor a relação com o outro, então todo discurso que prega um isolamento do mundo e a criação de guetos em que todos e todas pensam da mesma forma, ou ainda sistemas nos quais o isolamento é o mecanismo usado para promoção da vulnerabilidade por parte das populações, como nos casos totalitários, não podem ser considerados de base cristã.
Se é próprio do amor a geração da vida, então todo discurso e toda ação que gera a morte seja humana (com a pobreza, a miséria, os assassinatos etc), seja da natureza (o desmatamento exacerbado, a poluição dos rios, o aquecimento global etc), seja dos animais (a caça predatória, o uso de animais em testes de cosméticos etc) não pode ser vista como pertencente a um discurso que se diz cristão.
Dizer que Deus é amor tem implicações enormes para a vida em sociedade e para a forma como avaliamos as políticas públicas, as ações eclesiais, as relações humanas, as políticas ambientais, o desenvolvimento da economia, dentre outros. Sem a promoção da liberdade, a geração de vida e a relação amorosa com o outro, todo discurso que se diz cristão não passa de demagogia e instrumento para geração de lucros por líderes inescrupulosos.
Deus é amor e todo “mas” que geralmente é posto depois dessa frase, não tem outro intuito a não ser encaixá-lo em algum padrão moral que, na maioria das vezes, oprime e mata aqueles e aquelas que não optam por tal padrão.

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