Uma Escritura que não é Palavra: o risco do fundamentalismo

Uma Escritura que não é Palavra: o risco do fundamentalismo

Dentre os cinco solas propostos por Lutero: SolusChristus, Soli Deo Gloria, Sola Gratia, Sola Scriptura e Sola Fides, talvez o Sola Scriputra, seja aquele que seja o mais conhecido, tanto entre protestantes quanto entre católicos. Por muito tempo, esse princípio da Reforma foi motivo de diversas brigas entre católicos e protestantes e, não dificilmente, vez ou outra se encontram alguns discutindo sobre isso em debates acalorados em busca de convencimento do outro lado.
No entanto, ao se voltar àquilo que Lutero quis dizer a respeito do Sola Scriptura, se percebe que a discussão seguiu por um caminho que não era aquele que o reformador tinha em mente. Ao estabelecer esse princípio, ao contrário do que muitos pensam, Lutero não tinha em mente acabar com a Tradição cristã e jogá-la no lixo (o próprio fato dele ser da ordem dos agostinianos já deveria ser para todos um indício do grande apreço que esse tinha pela Tradição cristã), mas contrariamente a isso, seu intuito era lutar contra aquilo que a Igreja católica de seu tempo estava fazendo por meio da venda de indulgências, afirmando que as Escrituras deveriam sempre ter a primazia ante a Tradição, caso os princípios doutrinários vindos do Magistério fossem conflitantes com aqueles que se encontravam nelas.
Durante o final do século XVIII e início do século XIX, surge no Protestantismo a chamada Teologia Liberal. Essa, tendo como criador Schleiermacher será a responsável, no que tange à questão do texto bíblico,  por demandar estudos hermenêuticos mais aprofundados acerca deles textos, sob a égide dos métodos histórico-crítico, bem como em questionar sua autoridade enquanto uma palavra divina.
Na luta contra a Teologia Liberal que era crescente em seu tempo, Karl Barth, teólogo suíço tenta resgatar o valor do texto bíblico em sua Teologia Dialética, tendo como intuito uma volta à palavra de Deus sem depender de reconstruções históricas. Ao desconsiderá-las, porém, o que se tem é somente um texto totalmente desconectado de seu espaço e tempo de escrita, o que acarreta em se pensar o texto bíblico como algo vindo diretamente do céu para a Terra.
Com esse tipo de visão, não é difícil perceber porque, para muitos, as Escrituras passaram a ser usadas como definidoras de verdade. Uma vez que esse texto divino vem pronto da parte de Deus, que somente usa homens para escrevê-los, a fim de dar a revelar a sua vontade ao mundo, todo aquele que o possui e o decora está do lado de Deus. Consequentemente, aqueles que não seguem tal livro estão contra os planos de Deus. Dessa forma, a partir de uma leitura literal do texto bíblico, afirmar quem estava no caminho certo e quem deveria ser condenado se tornou muito claro. De uma religião da Palavra, alguns seguimentos cristãos se transformaram em mera religião do livro, onde o que vale não é mais o contexto e o sentido da palavra para o autor em seu determinado tempo e cultura, mas muito mais, passa-se a valer somente o texto ipsis literis, ou seja, aquilo que está escrito é aquilo que foi realmente dito por Deus.
O grande perigo que ocorre com esse tipo de leitura é aquilo que se pode definir como o fundamentalismo cristão. Esse tipo de fundamentalismo, que nasce justamente na luta contra o modernismo, bem como contra a Teologia Liberal do qual se falou mais acima, traz consigo a ideia de que eles são os que possuem as verdades imutáveis da parte de Deus e todos os outros estão do lado errado da história.
Infelizmente, em tempos atuais, cresce-se em diversas partes do mundo os movimentos de caráter fundamentalista religioso, sejam cristãos, sejam islâmicos, para se falar dos que se tem mais notícia. Em ambos, a tônica fundamentalista é sempre o resgate dos valores desejados por Deus, porque a sociedade se desvirtuou e anda por caminhos que não são aqueles para os quais Deus criou a humanidade.
Contudo, essa mesma pregação fundamentalista que acredita estar do lado de Deus é aquela que incita o ódio contra os homossexuais, negros, quilombolas, indígenas, imigrantes, enfim, contra tudo aquilo que vai contra certo padrão moral estabelecido no momento da escrita do texto o qual consideram como palavra de Deus. Com isso, a Palavra de Deus que visa a salvação se transforma na Escritura que oprime, julga e condena.
Certamente, a postura fundamentalista é uma postura daqueles que querem ter certeza a respeito do caminho em que estão, sendo essa certeza dada pela inerrância, veracidade e revelação estrita do texto bíblico a que esses tem acesso e seguem diariamente. Contudo, seria essa uma postura daquele que possui fé e que se lança no escuro na confiança de que quem está do outro lado é poderoso para o apanhar em suas incertezas?
Ao se tomar o texto bíblico desvinculado de seu contexto cultural e histórico, o Protestantismo se esquece de duas questões bem latentes no texto evangélico: em primeiro, do princípio encarnacional que se encontra no livro de João, a saber, que a Palavra se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14), ou seja, assumiu a vulnerabilidade e a incerteza própria do ser humano. Em segundo, que Aquele a quem chamam de Mestre foi um dos que transgrediu, aos olhos dos fundamentalistas de seu tempo, diversos preceitos que se encontravam nos textos da Torá, no intuito de mostrar que uma fé ancorada somente no texto escrito e desvencilhada da misericórdia não vale nada diante de Deus.

Nesse sentido, é imprescindível que o Protestantismo resgate o princípio do Sola Scriptura luterano, não em sua perspectiva fundamentalista, que leva o Cristianismo a ser uma religião do livro, mas em sua perspectiva teológica e hermenêutica, que o leva a ser uma religião da Palavra e, como portavoz dessa Palavra, é aquele que sempre tenta dizê-la dentro do tempo e do espaço daquele que a ouve a fim de que essa seja compreendida e apreendida.

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